“O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros”, recorro a esse excerto de Clarice Lispector para responder a uma provocação de escrita, há semanas esquentado as páginas do meu caderno: “Vizinhos do Farol da Solidão compartilham como é viver ao seu redor”.
Em ambas as sentenças estamos à beira de um paradoxo, a solidão, eu leio, é uma experiência coletiva. Precisamos do outro, seja para nos salvar da nossa própria solidão, seja para compartilhar a vida em torno dela.
Faço uma rápida pesquisa e descubro a existência do município Solidão, em Pernambuco, a Praia Solidão, em Florianópolis. O Farol, do parágrafo acima, fica no Rio Grande Do Sul.
A solidão é tema de notícias: no auge da pandemia de Covid, em 2021, nós, os brasileiros, nos sentimos o povo mais solitário do mundo; em 2023 a OMS criou uma Comissão Internacional para Conexão Social com a finalidade de lutar contra a epidemia da solidão.
Muito antes do interesse jornalístico ou científico, poetas, trovadores, músicos, sensíveis em geral, já deitavam a pena, os versos os acordes em homenagem a essa nossa sombra, companheira desde aquela primeira entrada de ar nos sacos alveolares, até o tempo atômico de um milionésimo de bilionésimo de bilionésimo de segundo antes da morte.
Sozinhos.
Somos.
Talvez por isso, alguns de nós sintam o impulso de materializar esse espectro, esse deus particular a quem atribuímos o mesmo nome, apesar da singularidade de suas roupagens. Para cada um, a solidão é única, intrínseca, exclusiva, e, sim, solitária. De vez em quando é preciso não só reconhecê-la e nomeá-la, mas dar-lhe materialidade, transformá-la em coisa própria, feito uma cidade, uma praia, um farol.
Pode haver algo capaz de simbolizar melhor a solidão do que a imagem de um farol piscando para a imensidão do mar?
O farol, por sua própria existência, já pressupõe a solidão. Dentro, o faroleiro vigiando, fora, o homem embarcado. Luz a atrair os insetos perdidos.
A escritora mexicana Jazmina Barrera é uma colecionadora de faróis, os físicos e os imaginados. Essa paixão tão grande deu luz ao Caderno de Faróis. No capítulo em que narra sua visita ao Blackwell Lighthouse, em Roosevel Island, ela diz: “Sinto que estou conseguindo. Desde que cheguei aqui, vejo que aos poucos estou me convertendo numa torre fechada”
Também eu, por esses dias, saí em busca de um farol. No meu caso, não era uma torre, nem ficava próximo da água. É preciso um esforço imaginativo para entender um farol nessas condições. Mas, ao pensar a vida como mar, água, movimento, e o farol como símbolo do imutável, talvez eu consiga, de dentro da minha solidão, compartilhar o significado de atravessar o país, rodar milhares de quilômetros, chegar no endereço de uma casa vazia, de cerca baixa, janelões de vidro, portão aberto, batizada, pela minha ilusão, de Farol da Gentileza, o porto de cada Gentile errante.
Esse lugar, sem qualquer significado para o resto do mundo, tem sido, durante toda a minha existência, a luz a iluminar tempestades e calmarias na vastidão das minhas navegações. Sempre soube, sem ter uma bússola comigo, sobre as coordenadas dessa travessia. Em qualquer caso, aportar é possível, mesmo esvaziada a torre, mesmo os espelhos quebrados, mesmo a luz enfraquecida. Exerço a musculatura essencial do afeto para manter o significado do meu farol particular, cuja visita me faz abrir portas para tempos naufragados.
Vivos e mortos conversando na mesma sala vazia. Sem nomear, um de nós cantarola um parlenda ouvida pela primeira vez no colo do pai, há mais de meio século, e os outros, hipnotizados pelo fragmento, fazem coro, repetem a rima, até todas as vozes se unirem em uma só.
Barcos em seus nortes.
Sinto a pulsão de dividir, não meu lugar, às vezes à deriva, outras norteado, porque sei, sou a única timoneira da minha embarcação, mas a sensação renovada do primeiro contato do ar com os pulmões, esse renascer doloroso.
Apesar do desejo, não há volta, só nos resta o mar.
Caderno de Faróis- Jazmina Barrera - aqui você pode conhecer muito mais que os faróis catalogados por Jazmina.
Farol da Solidão , Rio Grande do Sul, Praia da Solidão, Santa Catarina e Munícipio Solidão, Pernambuco.
A provocação para essa crônica veio da incível coleção de manchetes da minha amiga Marília Bonna , sócia da DoTexto, na oficina “crônica: a poesia do cotidiano”.
Esse projeto gráfico é uma criação da designer Giulia Mori Gentile , algumas imagens foram criadas por IA através do Canva
te ler é sempre boa companhia pra minha solidão, Erika ♡ sua crônica também me lembrou a entrevista de Clarice com Nelson Rodrigues. ela perguntou se ele se sente um homem só e ele respondeu: “do ponto de vista amoroso eu encontrei Lúcia. e é preciso especificar: a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal.”
Fui capturada por esse fragmento feito folha da árvore que cai no colo: "De vez em quando é preciso não só reconhecê-la e nomeá-la, mas dar-lhe materialidade, transformá-la em coisa própria, feito uma cidade, uma praia, um farol." Segui até o mar. Que beleza, Érica!