Ponto de Orvalho
tempo severo
Você enrola a primeira hora, mas lá pelas dez da manhã, quando abre a porta da geladeira para pensar, constata o vazio interior, se lembra da segunda-feira e da fatura por não cozinhar. Só resta entregar os pontos, pegar as retornáveis e torcer por uma promoção de vinhos ou de queijos, ambos seria muita sorte.
No seu caso, torce por outras coisas também, frutas maduras, possíveis de comer no mesmo dia ao invés de mangas geladas e melancias cozidas, mas sabe, está pedindo demais
Logo de cara uma batida no estacionamento. Quem bate o carro no estacionamento? Você manobra num espaço minúsculo, o máximo de cuidado para não ser a terceira envolvida. Estaciona a três quilômetros da entrada, numa sombrinha de Eternit. Atravessa o pátio devagar, sabe, qualquer passo em falso vai doer nos ossos.
Lá dentro, fileiras em movimento, a luz branca e o ar-condicionado trincando, pensa numa nave espacial invadida por uma população de chinelos e bermudas, a playlist misturando Jack Johnson com Mestrinho, você parada no portal fazendo o cálculo. Começar pela banca de tangerina ou produtos de limpeza? Decide pelas frutas. Elas sempre te causam alguma urgência. Se aproxima da banca e, feito uma abelha, tenta ser mais esperta que o repositor e não escolher as amassadas, as verdes ou as passadas. O saquinho arrebenta. Você equilibra as frutas, pega outro, certifica-se de guardar as escolhidas e conduz o carrinho para a banca de bananas verdes e geladas. Comprar bananas já foi uma coisa muito trivial. Dois cajus por dezenove reais, os preços vão te expulsando da hortifruti, puxa vida, vai voltar sem quase nada de novo.
Usa a lista sem distrações na seção de limpeza. Lembra da lição do Duolingo, você está justamente tentando aprender a dizer chariot, supermarché e usar corretamente os acentos, pronunciar roçando o erre na garganta. Água sanitária, esponja de aço, veneno para moscas.
Entre o azeite e o café. Café.
Não quer cozinhar, o calor está insuportável, o ponto de orvalho em apenas doze por cento, coisa mais bonita essa do orvalho ir parar na meteorologia, a poesia e a ciência estão sempre namorando.
Decide por frios e pão francês. Sim, vai entrar caloria vazia e ultraprocessados no seu corpo, profanar os templos, a boa prática dos domingos. Você se coloca na fila, a música é Dancing Queen, apenas um atendente, onze e quarenta e cinco. Do seu lugar dá para ver o movimento nos caixas, a maioria fechada, você em paz, não vai cozinhar mesmo.
Dez minutos e chega a sua vez, você sorri para o rapaz, diz bom dia, pede, por favor, duzentos gramas de mortadela Ceratti bem fininha.
Tão logo faz o pedido, percebe a precipitação da hecatombe.
Ao seu redor, silêncio, as pessoas muito iluminadas pela fria luz branca, o sorriso do funcionário desaparece, a fila atrás de si se organiza de braços cruzados, afrontada. O rapaz pega a enorme esfera de carne rosada e pisa como um astronauta em direção ao fatiador, você sente a sua própria cara sendo cortada na máquina, em fatias bem fininhas,caindo na bandeja de isopor, sua epiderme, a derme, a hipoderme. Poderia ter escolhido o presunto, o queijo, a defumada, qualquer coisa pronta para ser pesada e levada na hora. Mas foi luxenta, às onze e cinquenta e cinco do último domingo do mês, quis a fatiada da Ceratti.
O rapaz fatia trezentos gramas. Você aceita a bandeja de isopor sem reclamar, entra humilde na fila do pão, pede seis e quase se desculpa.
Escolhe aleatoriamente um dos caixas, Jimi Hendrix canta Little Wing, uma população inteira de trabalhadores se afunilando para a mesma saída, seu carrinho é um médio entre os vários se encaixando pelos corredores, passa do meio-dia e meia quando chega a sua vez. Uma mulher te aborda. Posso passar só esse refrigerante? Você concorda imediatamente. Entrega seu lugar na fila e faz as pazes com a mortadela.
Esse projeto gráfico é uma criação da designer Giulia Mori Gentile , algumas imagens foram criadas por IA através do Canva



