Março e abril são nossos meses de aniversários aqui em casa. Como todo ano teve muito WhatsApp, alguns telefonemas, chamadas de vídeo, poucos encontros, porque, sabemos, os encontros foram transferidos para a categoria luxo. Encontro implica logística, lugar e hora, ajustar o tempo, vestir roupa, escolher o cardápio, reservar ou arriscar, álcool ou carro, barato ou no crédito, afinal hoje é quinta, sábado, estamos mortos, aniversário tem todo ano e o que eu queria mesmo era chegar do trabalho, tomar um banho, ficar no ar-condicionado, quem sabe uma cervejinha e salgadinho de festa. Até inventaram um nome para isso: bateria social. No caso, bateria social viciada, não carrega mais.
Seja feita a nossa vontade, ficaremos em casa, reclusos, na temperatura do quarto, celular nas mãos, cada um com o seu, televisão ligada, entre uma chamada e uma cena, a gente troca um olhar, uma palavra e cede ao cansaço, à intimidade do silêncio.
O mundo coorporativo também dispara e-mails nos nossos aniversários, a seguradora, o Banco, o plano de saúde, aquela marca de aparelhos invisíveis para os dentes e todas as diversas empresas em disputa pelo nosso fracasso financeiro, com ofertas absolutamente incríveis. Quem sabe, na nossa solidão a gente queira uma compensação maluca e se arrisque a financiar um imóvel, comprar uma passagem para Dubai, fazer um implante capilar? São tantas as oportunidades.
Um e-mail cartão, nos moldes desse acima, criado pelo departamento de marketing de uma incorporadora imobiliária, balões vermelhos, mensagem com as palavras chaves “alma, coração, janela, experiências”, chegou na caixa, furou os filtros de spam, e veio acompanhado da cereja: OBS: Favor não responder esse e-mail.
Penso na pessoa solitária, aquela cujos amigos desapareceram, sem o norte da casa da infância, a pessoa estrangeira em sua própria terra, cujo único contato no dia do seu aniversário seja um e-mail coorporativo saído de uma mala direta, com seu nome tirado de uma lista do sindicato. Ela recebe aquela mensagem e imediatamente é convidada a voltar a sua solidão, favor não responder esse e-mail, não nos devolva o lixo eletrônico gerado para você, compreenda, trata-se apenas de uma ação de marketing, seja adulto, maduro, jogue no lixo tão logo receba.
Imagino também a pessoa do marketing, também ela solitária, também ela perdida dos seus planos, também ela atolada entre boletos, planilhas e metas, limitada a elaborar um cartão de aniversário capaz de atender as expectativas da empresa, gerar cliques, retornos, curvas.
E se, hipoteticamente, essas pessoas se encontrassem no balcão de um bar e um deles fizesse o gesto de oferecer ao outro um trago, ignorando o alcance do algoritmo, assumisse por sua conta a coragem da aproximação? E se pelo cansaço da ilha, saíssem do balcão para a praça, para a vida, para a partilha, para o verbo? E se o aniversariante do dia confidenciasse sua solidão, segredasse o único e-mail recebido, aquele que não queria resposta?
E se?
Dias perfeitos sei que está todo mundo falando dele, mas é pra falar mesmo. Se você optou por ficar em casa, assista esse filme belíssimo de Kôji Yakusho. Um tratado sobre a arte de estar só e bem.
HER é sempre bom pensar em Her de Spike Jonze quando a gente fala de solidão e tecnologia, principalmente quando aquele futuro é quase o nosso presente.
Presentes inesperados na Rádio Novelo Apresenta duas narrativas sobre sobre presentes que podem mudar absolutamente tudo.
Na Roma antiga, pensava-se que espíritos malignos vinham roubar o espírito do aniversariante e realizavam-se oferendas no dia do nascimento.O ritual era considerado uma festa pagã pela igreja católica e só foi adotado no século 5 D.C., quando a instituição passou a comemorar o Natal.
O Bolo de aniversário teve sua origem na Grécia, quando um bolo em oferenda era levado de Ártemis para a Deusa Lua, numa época em que as fases lunares serviam de calendário para o homem.
Já os cartões de aniversário surgiram com os Ingleses, no início do século 20, como forma de desejar bons votos e desculpar-se pela ausência, quando faltavam às festas.
A vida toda dividimos eu e duas irmãs o mês do nosso aniversário. Nessa época minha mãe organizava uma comemoração num final de semana, o mesmo bolo para as três. Eu particularmente me lembro de um bolo feito com groselha, ameixa preta e um creme amarelo. Essa memória está numa cozinha grande, nas avós sentadas no sofá, um aniversário sem balões, com tímidos embrulhos de presente, guaraná caçulinha, empadinhas, brigadeiros e vozerio.
Vivo marcando e desmarcando com meus irmãos esse encontro para o bolo de groselha, ao adiar, adio também o confronto com a realidade, a percepção do excesso de doçura do bolo, a falta das pessoas importantes no entorno da mesa desaparecida do mundo real. Adio para viver com eles no mundo invertido das lembranças comuns. Apesar disso, não me esquivo dos encontros, gosto deles, gosto dos abraços, da conversa olho no olho, do assunto aleatório, do léxico a nos definir, de me reafirmar como pessoa viva, capaz de perceber e me relacionar com o outro.
BOLO DE GROSELHA
Massa
Ingredientes:
6 ovos ( claras em neve )
3 xícaras de chá de açúcar
3 xícaras de chá de farinha de trigo
1 xícara de chá de suco de laranja
1 colher de sopa de fermento químico
Bater as gemas, o açucar e o suco de laranja até clarear, acrescentar a farinha, o fermento e por último as claras em neve.Misturar sem bater.
Assar em fomar untada, forno pré aquecido a 180°
Recheio e cobertura:
1 lata de leite condensado
1 lata de leite
2 ovos batidos
1 colher de chá de essência de baunilha
2 colheres de sopa de amido de milho
1 lata de pêssegos em compota
300 gramas de ameixa preta
2 colheres de sopa de açúcar
1 copo de groselha
Levar ao fogo brando, o leite condensado, o leite, os ovos, a baunilha e o amido de milho,mexendo para que fique homogêneo e cozinhando até o ponto de mingau.
Em outra panela, fazer uma calda com duas colheres de açucar, água e a ameixa.
Cortar os pêssegos em cubos.
Montagem
Cortar o pão de ló em três partes iguais .
Numa bandeja , colocar uma parte do pão de ló, regar com metade da groselha , cobrir com creme e acrescentar a ameixa e o pêssego. Repetir o processo. A última camada deve ser coberta apenas com o creme.
Esse projeto gráfico é uma criação da designer Giulia Mori Gentile , algumas imagens foram criadas por IA através do Canva
Eu me senti presenteada com essa edição - também aniversariante cansada, sentada na poltrona lendo uma Newsletter dessas (ai, ai!).
Gente, como assim bolo de groselha? Achei que groselha era um sabor fake de picolé (nunca vi mais nada de groselha na vida). Hahahaha
Adorei a história do "e se". Fiquei com vontade de ler mais! "Dias perfeitos" é tão bonito. Passei o filme todo sorrindo.